NICOLAS MALEBRANCHE
No século XVII,
tentar harmonizar a razão e a fé era mais ou menos como colocar na mesma panela
um litro de água fervendo (Santo Agostinho) e um pedaço de gelo (Descartes).
Mesmo assim, Malebranche conseguiu. Vamos ver como.
A vida
Nicolas
Malebranche nasceu em Paris, em 1638, caçula de uma ninhada de doze filhos. Por
não ser propriamente muito saudável, fez todo o primário em casa e só mais
tarde, ao chegar à maioridade, matriculou-se nos cursos de filosofia da
Sorbonne. Naquela altura um tio dele, um padre de Notre-Dame, para afastá-lo
das tentações da vida parisiense, inseriu-o numa confraria religiosa, a dos
padres oratorianos. Tratava-se de um grupo de nobres carolas que só pensavam em
meditar e rezar. Aos 22 anos saiu de lá como sacerdote e tudo poderia ter
ficado na mesma se ele não ficasse repentina e inteiramente fascinado por
Descartes.
Certo dia estava
passeando no Quai des Augustins quando um livreiro amigo deteve-o na porta da
livraria.
– Olá, Nicolas, como vai você?
– Muito bem, e você? – ele respondeu.
– Já leu o último livro de Descartes?
– Não, qual?
– O que fala do homem. O da razão. Descartes
escreveu-o vinte anos antes de morrer, mas amoleceu e não teve a coragem de
entregar ao prelo. Depois daquilo que aconteceu com Galileu, corria o risco de
vê-lo queimado em praça pública. Agora, no entanto, os discípulos decidiram
publicar.
E foi assim que
Malebranche, em 1664, leu o Tratado do homem, de Descartes. Foi para ele uma
leitura tão esclarecedora que acabou se convencendo de que era, logo ele tão
cheio de dúvidas e de defeitos, o protagonista do livro. Compreendeu, por
exemplo, que na vida a razão podia ser mais útil que a fé, e ficou tão
convencido disso que às vezes sentia-se forçado a fechar o livro “para não se
deixar levar pela excitação”.
Morreu em 1715.
As obras
Entre as suas
obras, a que mais merece ser lembrada é a primeira: a Busca da verdade,
publicada em 1675, à qual se seguiram, um depois do outro, o Trattato della natura e della grazia
(1680), o Trattato sulla morale e
principalmente as Conversazione sulla metafisica, no qual faz
um resumo, para os que porventura
ainda não tivessem compreendido o seu pensamento, de todas as suas ideias.
O pensamento
Como era de
esperar, Malebranche também teve seus inimigos. Primeiro um certo Foucher o
acusou de heresia, depois o jesuíta Le Valois o atacou quanto ao conceito de
“eucaristia” e, finalmente, um homem insidioso, chamado Arnauld, conseguiu
botar no Índex todos os livros que ele tinha escrito. Quer dizer, como muitas
vezes acontece com os autores bem-sucedidos, quanto mais as suas obras eram do
agrado do público, mais ele era atacado pelos críticos.
Mas qual era,
afinal, o seu assunto preferido? Pois bem, era a contraposição entre a Alma e o
Corpo, ou, para usarmos as palavras de Descartes, entre a res cogitans e a res
extensa. Ele, Malebranche, estava convencido de que tanto a Alma quanto o Corpo
cuidavam cada um da sua própria vida e a respeito disto escreveu:
Não há qualquer
relação de causalidade entre um Corpo e um Espírito, e tampouco entre um Corpo
e outro Corpo. Nenhuma criatura, em resumo, pode agir sobre outra. E o fato de
Deus poder desejar esta união, sempre foi e continua sendo para mim um
mistério.
A Alma,
Malebranche precisa, pensa em Deus, enquanto o Corpo cuida das coisas práticas
do dia a dia. O problema é que, enquanto do Corpo sabemos tudo, da Alma não
sabemos quase nada. Só sabemos que existe. E como sabemos disto? Sabemos porque
“sentimos”. E como conseguimos “sentir”? Pois é, lá vamos nós novamente nas
águas de Descartes: “... se penso que existe... quer dizer que existe.”
A propósito de
Malebranche,
e da distinção
entre Alma e Corpo, proponho ao leitor
um breve conto de ficção científica para que possa entender em
que parte do corpo se esconde a alma:
O xeque Imm
Hortal, de cinquenta anos, certo dia decide que quer ser clonado. Um amigo dissera para ele: “Meu caro Imm, tu
és muito rico. Convém te fazeres clonar para que possas sempre dispor de um
corpo para eventuais transplantes. Para ti, seria uma espécie de almoxarifado.
Vamos dizer que daqui a uns tempos precises, sei lá, de um fígado, ou de um
coração, de um rim... pois é, no problem, só precisarias tirá-lo do clone e
colocá- lo em ti.”
Imm aceita o
conselho: contrata por milhares de dólares uma equipe de cirurgiões famosos e cria um clone à sua imagem e
semelhança. Em seguida esconde-o numa ilha perdida para que ninguém acabe
sabendo da coisa. Depois, já com setenta anos,
percebe que graças a Alá nunca precisou de um transplante, e o que
decide fazer, então? Manda transplantar o cérebro, o dele, no corpo do clone, e
recomeça a viver como se estivesse
outra vez com vinte anos. E não é só: também espera poder fazer o mesmo
de novo dali a cinquenta anos. A clonagem, para ele, tornou-se um meio de imortalidade.
Afinal, o seu nome, Imm Hortal, lido de uma só vez soa justamente como
“imortal”.
Nessa altura
pode-se perguntar: e onde estaria a alma de Imm? No velho corpo, o que ele
mandou sucatear, ou no novo, ou então no cérebro que continua sendo o mesmo?
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