A Escolástica A Escolástica Pós-Tomista
O Século XIII: O Triunfo de Aristóteles
A
atividade filosófica da escolástica pré-tomista foi essencialmente
lógico-dialética e, logo, formal. Esta atividade formal, intensa e penetrante,
esperava um conteúdo adequado, racional, filosófico. E tal conteúdo lhe foi
proporcionado pela descoberta do sistema aristotélico integral, que representa
o ápice do pensamento helênico. O mundo latino-cristão, escolástico, depois de
conhecido Aristóteles através da cultura árabe, apaixonou-se pela filosofia
aristotélica, que estudou intensamente. Este movimento cultural e filosófico se
desenvolveu especialmente no âmbito das universidades, então surgidas e
organizadas eficientemente, graças aos pensadores pertencentes às ordens
religiosas, os quais a tudo renunciaram, salvo à ciência e à caridade.
A
atitude do mundo latino-cristão perante Aristóteles foi tríplice: uma decidida
aversão à filosofia que queria constituir-se unicamente com meios racionais, e
um retorno ao agostianismo (São Boaventura); um culto idolátrico para com o
Estagirita, que foi identificado com a própria razão humana e preferido, no
fundo, à revelação cristã, quando não concordava com a razão (averroísmo
latino); uma aceitação e valorização do sistema aristotélico, mas crítica e
racional, pelo qual se chegou à construção de uma filosofia distinta e
autônoma, mas em harmonia hierárquica com a fé (Tomás de Aquino).
Como
dissemos, foram os árabes - e secundariamente os hebreus - que
levaram ao conhecimento do mundo latino-cristão a filosofia de Aristóteles. Os
árabes, após terem conquistado o oriente helenista, entraram em contato com a
cultura grega, especialmente na Síria. Em seguida, estendendo suas conquistas
até o ocidente europeu, trouxeram-lhe a própria cultura impregnada de
aristotelismo. Os árabes foram admiradores de Aristóteles e da sua filosofia,
que salvaram das invasões bárbaras durante as trevas medievais do Ocidente
latino. E assim, originariamente bárbaros eles mesmos, os árabes, por sua vez,
foram civilizados pelo pensamento grego, aristotélico. Os maiores filósofos
árabes conhecedores de Aristóteles e que influíram profundamente sobre o
Ocidente latino-cristão, foram Avicena e Averroés. Avicena tentou
harmonizar a filosofia aristotélica com a religião islâmica. Averroés,
- o famoso comentador de Aristóteles - afirmava ao invés a subordinação da
religião a filosofia quando as argumentações delas fossem contrastantes, e
considerava a religião como uma filosofia simbólica para o vulgo.
Era
preciso traduzir do árabe para o latim as obras de Aristóteles e os comentários
árabes. Foi o que fez, nos meados do século XII, uma sociedade de homens cultos
surgida em Toledo, na Espanha. Mais tarde sentiu-se a necessidade de traduzir
diretamente do grego as obras de Aristóteles, e, por conselho de Tomás de
Aquino,Guilherme de Maerbeke (falecido em 1286) fez essa tradução,
que proporcionou aos latinos o conhecimento do genuíno pensamento do
Estagirita.
Ao
mesmo tempo se desenvolveram as universidades, as grandes
universidades medievais, surgidas geralmente das escolas episcopais; famosas
mais que todas as outras, foram as universidades de Paris e de Oxford. A
universidade de Paris, a mais ilustre universidade da Idade Média, desenvolveu
especialmente a filosofia e a teologia, inspirando-se na mentalidade
aristotélica, ao passo que a universidade de Oxford dedicou-se especialmente às
ciências naturais, inspirando-se na mentalidade agostiniana. O conjunto dos
professores e dos alunos da universidade de Paris, em princípios do século XII,
constituiu um corpo único, uma universitas única, e obteve das
autoridades civis e religiosas reconhecimento jurídico e grandes privilégios.
Especialmente os papas protegeram a universidade de Paris, devido à importância
que tinha naquele estabelecimento do ensino superior universitário a teologia.
Desta sorte, tal universidade se tornou como que a cidadela cultural da
ortodoxia católica, o seminário dos filósofos e dos teólogos de
todo mundo.
Nessas
universidades recém-organizadas, bem cedo, contra a vontade dos leigos e por
desejo dos papas, entraram e tiveram preponderância professores pertencentes as
duas ordens religiosas surgidas no século XIII: os Dominicanos,
fundados por São Domingos de Gusmão, espanhol, e os Franciscanos,
fundados por São Francisco de Assis, italiano. A característica nova e comum
destas duas ordens religiosas foi a pobreza individual e coletiva, donde o nome
de mendicantes a elas atribuído, e também certa liberdade a
respeito das obrigações conventuais, para melhor facultar o cultivo do estudo e
a pregação apostólica entre o povo. Os dominicanos dedicaram-se mais ao estudo,
à ciência, inspirando-se no pensamento aristotélico, exercendo, destarte, sua
maior influência entre as classes sociais elevadas; os franciscanos, ao
contrário, propuseram-se como finalidade principal a caridade ativa e tiveram
uma enorme influência sobre o povo, inspirando-se na mentalidade agostiniana.
Os Filósofos Franciscanos
Os
filósofos franciscanos julgaram fosse mister dar uma forma teórica à atitude
prática, afetiva, sentimental do Pobrezinho de Assis que entrevia Deus e Jesus
Cristo em todas as coisas. E julgaram os filósofos franciscanos que, para
tanto, se prestasse o agostinianismo, com o seu misticismo e voluntarismo -
julgando inapto para esse fim o racionalismo, o empirismo e o intelectualismo
aristotélicos.
O
maior representante do agostinianismo antiaristotélico foi São
Boaventura (1221-1274); nasceu na Itália, estudou em Paris e, mais
tarde, foi geral da sua ordem e depois cardeal de Albano. Suas obras principais
são: os Comentários a Pedro Lombardo, o Itinerário da
Mente para Deus, sobre a Redução das Artes à Teologia.
Segundo
São Boaventura, a tarefa da filosofia não é teórica e racional, mas prática e
religiosa, isto é, a filosofia deve levar a Deus, que se atinge imediatamente
em todas as coisas e se possui pela união mística, como ele descreve no Itinerário.
A gnosiologia de Boaventura inspira-se no iluminismo agostiniano, que lhe
sugeriu a prova intuitiva da existência de Deus, enquanto ele é imediatamente
presente ao espírito humano. A metafísica de Boaventura, pois, afirma três
princípios diretamente opostos ao aristotelismo tomista: a existência de uma
matéria geral sem as formas específicas; a pluralidade das formas em um mesmo
ser, tantas quantas são as suas propriedades essenciais; a universalidade da
matéria fora de Deus, porque todos os seres são compostos de matéria e de
forma, inclusive as essências angélicas e as almas humanas. A psicologia de
Boaventura, pois, sustenta que a alma humana é uma substância completa
independentemente do corpo, composta de forma e matéria, auto-suficiente.
Diametralmente
oposto a este aristotelismo agostiniano, é o aristotelismo exagerado
averroísta, que aceita o sistema aristotélico sem crítica nenhuma, e, por
consequência, será inteiramente infecundo. Esta orientação filosófica é chamada
averroísta, porquanto admite - como admitia Averroés - que haja teses
filosóficas em contraste com o teísmo da religião, ainda que pareça limitar-se
a sustentar a existência de duas verdades paralelas e contrastantes, e não
chegar até subordinar a religião à filosofia. O maior representante do averroísmo
latino é Siger de Brabante (falecido pelo ano de
1284), professor na universidade parisiense, condenado mais tarde pela Igreja.
A sua obra principal é Da Alma Intelectiva. As teses mais notáveis
de Siger em contraste com o cristianismo são: a negação da providência divina;
a afirmação da eternidade do mundo; a afirmação da unidade do intelecto na
espécie humana e a consequente negação da imortalidade pessoal do homem. Entre
estas duas posições extremadas - de idolatria ou de irredutível hostilidade - a
respeito de Aristóteles, medeia Tomás de Aquino, que realizará a justificação
da filosofia e da teologia.
A Escolástica Pós-Tomista
O
tomismo era, talvez, um movimento excessivamente novo e arrojado, para poder
súbita e definitivamente impor-se no âmbito do pensamento cristão medieval.
Houve, portanto, no mesmo século XIII, logo depois de uma reação violenta
contra o tomismo, um retorno especulativo ao agostinianismo, que julgou
encobrir o seu anacronismo, tentando uma superação do racionalismo tomista.
Entretanto esse movimento terminará nas posições fideístas do pré-tomismo,
acentuadas e tornadas piores após a poderosa construção crítica e racional do
Aquinate; e terminará, consequentemente, na ruína da metafísica, da filosofia,
da ciência. A escolástica pós-tomista, contudo, sentiu profundamente o problema
da concretidade e da experiência, indubitavelmente negligenciado pela
escolástica clássica, donde surgirão a história e a ciência modernas - com suas
técnicas - que constituem o valor do pensamento moderno.
O
centro desta escolástica pós-tomista é a universidade de Oxford, na Inglaterra,
cujas características tendências empiristas, experimentais, positivas,
práticas, são conhecidas.
Rogério Bacon
Rogério Bacon (1210-1294),
nascido na Inglaterra, entrou na ordem franciscana e estudou nas universidades
de Oxford e de Paris. Após Ter lecionado algum tempo em Oxford, foi obrigado a
deixar a cátedra. Estabeleceu-se então em Paris, onde levou uma vida agitada e
foi condenado à prisão pelos próprios superiores da sua ordem. Crítico
agressivo das maiores autoridades da sua época, foi um temperamento genial e
original, enciclopédico e místico, cientista e supersticioso. A sua obra mais
importante é a chamada Obra Maior; publicou ainda a Obra
Menor e a Terceira Obra.
Segundo
Bacon, três são as fontes do saber: a autoridade, a razão, a experiência. A autoridade dá-nos
a crença, a fé não porém a ciência, porquanto não nos fornece a compreensão das
coisas que formam o objeto da crença. A razão proporciona essa
compreensão, quer dizer, a ciência; no entanto, não consegue distinguir o
sofisma da demonstração verdadeira, se não achar fundamento e confirmação na
experiência. A ciência experimental constitui a fonte mais sólida
da certeza. Conforme Bacon, todavia, deve-se entender por experiência não
apenas a que se alcança pelos sentidos externos e nos oferece o mundo corpóreo,
mas também a experiência proporcionada pela iluminação interior de Deus. É,
como se vê, um vestígio do agostinianismo tradicional. Do agostinianismo, Bacon
aceita também a unidade entre filosofia e teologia, que Tomás tinha
distinguido.
João Duns Scoto
O
maior expoente da escolástica pós-tomista é, sem dúvida, João Duns
Scoto, o doutor sutil. Também ele, inglês e franciscano, foi aluno e
professor nas universidades de Oxford e de Paris. Faleceu em 1308. Suas obras
principais são: a Obra Oxoniense, isto é, o tradicional comentário
das sentenças de Pedro Lombardo; os Teoremas Sutilíssimos, as Questões
Várias, a Obra Parisiense. Nestas obras revela-se um crítico e
um pensador de muito superior à São Boaventura.
O
agostinianismo de Scoto manifesta-se, antes de tudo, no conceito de filosofia,
entendida como instrumento para entender a fé e não como obra autônoma do
espírito, como julga Tomás de Aquino. E, por sua vez, a teologia não é -
segundo Scoto - disciplina essencialmente especulativa - como julga Aquinate -
mas unicamente prática, em conformidade com o espírito do voluntarismo
agostiniano.
A
gnosiologia iluminista-intuicionista agostiniana firma-se no escotismo não
tanto como participação da inteligência humana na luz divina, quanto como sendo
a espontaneidade e a independência do intelecto com respeito ao sentido. Em
todo caso, está contra o chamado empirismo aristotélico-tomista, conforme o
qual o nosso conhecimento começa pela sensibilidade. Scoto concede, em linha de
fato, o empirismo do nosso conhecimento; não o admite em linha de direito, como
exige o tomismo. E isso seria devido - segundo o doutor sutil -
à escravidão da alma com respeito ao corpo, decorrente do pecado. Pelo
contrário, deveria a alma, por sua natureza, conhecer diretamente as essências,
não só as materiais mas também as espirituais.
Na
teodicéia, Scoto (contra a corrente agostiniana e em harmonia com o tomismo)
ensina que Deus não é conhecido por intuição; a existência de Deus é
demonstrável apenas com argumentos a posteriori, embora procure
também combinar esta demonstração com o argumento ontológico, a priori.
Quanto à natureza divina, o atributo essencial de Deus seria a infinidade.
Na
psicologia escotista aparece ainda uma doutrina inspirada no agostinianismo. É
a doutrina do conhecimento intuitivo da essência da alma, princípio de todos os
demais conhecimentos. E também inspira-se no agostinianismo a doutrina de certa
independência da alma com respeito ao corpo; seria a alma, por natureza, uma
substância completa.
Com
efeito, segundo Scoto, todos os seres, mesmos os espirituais, são compostos de
matéria e de forma. A matéria não é mera potência, inexistente sem a forma, mas
tem uma realidade sua própria; a forma não é única, mas há multiplicidade de
formas em cada indivíduo. A individuação não depende da matéria (pelo que o
indivíduo fica incognoscível intelectualmente), mas de um elemento formal
individual, chamado haecceitas (que se sobrepõe à matéria por si
subsistente e à hierarquia das formas); destarte, o indivíduo se tornaria
intelectualmente cognoscível.
Contra
o intelectualismo tomista, Scoto sustenta a primazia da vontade: a vontade não
depende do intelecto, mas o intelecto depende da vontade. A tarefa do homem é
conhecer para querer e amar; na vida eterna, Deus seria atingido, na visão
beatífica, pela vontade, pelo amor e não pelo intelecto. Scoto põe também em
Deus esse primado de vontade sobre o intelecto. Desse modo, as coisas criadas
por Deus não dependem fundamentalmente da razão divina, e sim da vontade
divina. E a própria ordem ética não é intrinsecamente boa por motivo racional,
mas unicamente porquanto é querida por Deus, que poderia impor uma ordem moral
oposta, em que, por exemplo, a mentira, o adultério, o furto, o homicídio,
etc., seriam ações morais, e imorais as ações opostas.
Guilherme de Occam
Guilherme de Occam é, ao mesmo tempo, um opositor e um discípulo
de Scoto: discípulo, no sentido de que desenvolve o individualismo de haecceitas escotista
no nominalismo, que ele fez reviver no ambiente experimental da universidade de
Oxford, depois do realismo imanente aristotélico-tomista. Guilherme nasceu em
Occam na Inglaterra pouco antes do ano de 1300; fez-se franciscano, estudou e
lecionou na Universidade de Oxford. Processado por heresia pela Santa Sé,
refugiou-se junto do Imperador, então em luta contra o Papa, e escreveu várias
obras para defender o imperador contra a Santa Sé. Faleceu pelo ano 1350. Suas
obras especulativas são, além do Comentário às Sentenças de
Pedro Lombardo: Sete Várias Questões, Suma de Toda a Lógica, Centilóquio
Teológico.
Segundo
Occam, o conhecimento sensível é superior ao conhecimento intelectual,
porquanto o primeiro é intuitivo, ao passo que o segundo é abstrato; o primeiro
dá-nos a realidade, concreta e individual, ao passo que o segundo nos dá apenas
as semelhanças entre seres reais (as ideias gerais), e, por conseguinte, um
conhecimento vago e confuso deles, que não nos permite distingui-los um do
outro. O conhecimento sensível dá-nos as relações reais entre as coisas reais
(o nexo causal, que se conhece só pela experiência), ao passo que o
conhecimento intelectual nos proporciona conhecer as relações lógicas entre
conceitos abstratos, sem nada nos dizer em torno da realidade das coisas. Em
conclusão, a sensação é o sinal de um objeto na alma; o conceito é sinal de
mais objetos percebidos como semelhantes. O conceito, pois, é um sinal natural,
representado pelo nome que é, porém, um sinal artificial, variável segundo as
diversas línguas.
Estamos
na linha do experimentalismo inglês da Universidade de Oxford; desse
experimentalismo deriva o empirismo, e deste deriva logicamente a ruína do
conceito e, consequentemente, da ciência, da filosofia, da moral, etc. E deriva
também a ruína das próprias noções de substância e causa, indispensáveis à
própria ciência natural, porquanto essas noções de substância e causa não são
experimentáveis. Pelo fato de a alma e Deus não serem sensíveis, segue-se que
não são cognoscíveis. Deus não se pode provar a posteriori mediante
o princípio de causalidade, válido empiricamente; e também não se pode provar -
pela via de causalidade - a alma, de que é impossível demonstrar
cientificamente a imortalidade.
Dado
que em torno de Deus nada conhecemos filosoficamente, e dado outrossim o
voluntarismo divino escotista, a vontade de Deus é absolutamente livre para
criar uma moral mesmo oposta à presente, e para estabelecer uma outra ordem
sobrenatural (por exemplo, se Deus quisesse, o Verbo poderia Ter-se encarnado
num burro). Destarte, a ciência humana reduz-se à física, que nos faz conhecer
os seres materiais, sensíveis, a lógica que nos ilustra as relações entre os conceitos.
Portanto, nenhuma metafísica: o conhecimento de Deus, da alma, da moral, etc.,
é abandonado inteiramente à Revelação, à fé (fideísmo). Esta absoluta divisão
entre a razão e a fé, coloca o ocamismo em uma posição afim à do averroísmo da
dupla verdade. Com o diminuir da fé medieval e com o firmar-se do humanismo
moderno, bem cedo a razão se porá contra a fé e a substituirá. O ocamismo tem
um êxito vasto e imediato nos séculos XIV e XV; mas logo declina, degenerando
num formalismo lógico. Com ele declina e, historicamente, termina a escolástica
medieval.