A Escolástica
Pré-Tomista
Características Gerais
A Escolástica representa o último
período do pensamento cristão, que vai do começo do século IX até o fim do
século XVI, isto é, da constituição do sacro romano império bárbaro, ao fim da
Idade Média, que se assinala geralmente com a descoberta da América (1492).
Este período do pensamento cristão se designa com o nome de escolástica,
porquanto era a filosofia ensinada nas escolas da época, pelos
mestres, chamados, por isso, escolásticos. As matérias ensinadas
nas escolas medievais eram representadas pelas chamadas artes liberais,
divididas em trívio - gramática, retórica, dialética - e quadrívio -
aritmética, geometria, astronomia, música. A escolástica surge,
historicamente, do especial desenvolvimento da dialética.
A falta dessa distinção - específica do
pensamento agostiniano - manifesta-se não apenas na corrente chamada mística,
mas também na orientação denominada dialética do pensamento
medieval pré-tomista. Misticismo e dialeticismo, todavia, se diferenciam
profundamente entre si. O segundo, com efeito, embora parta da revelação e do
sobrenatural, toma-os como dados e pretende penetrá-los mediante a filosofia,
até procurar as razões necessárias dos mistérios, finalizando uma espécie de
racionalismo (Anselmo de Aosta e Pedro Abelardo). É, porém, um racionalismo
inconsciente, proveniente da ignorância da verdadeira natureza e dos
verdadeiros limites da razão. E, mesmo que os resultados lógicos pudessem ser
os mesmos do racionalismo verdadeiro e próprio, o escopo não era reduzir a
religião aos limites da razão humana, mas levantar esta à compreensão do
supra-inteligível, a uma espécie de intuição mística.
A tendência mística, pelo contrário,
(São Pedro Damião e São Bernardo de Claraval) põe, acima e contra a razão e o
intelecto, uma outra forma de conhecimento, de experiência do Divino: o
sentimento, a fé, a vontade, o amor, culminando na união mística, no êxtase.
Depois destas premissas, podemos dividir
a escolástica em três períodos, colocando o período central da escolástica a
figura soberana de Tomás de Aquino. Teremos, assim, um período pré-tomista em
que persiste a tendência teológica-agostiniana. Este primeiro período da
escolástica vai do começo do século IX (Carlos Magno) até à metade do século
XIII (Tomás de Aquino), e pode ser assim dividido: séculos IX e X (Scoto
Erígena e a questão dos universais); séculos XI e XII (místicos e
dialéticos); século XIII (o triunfo do aristotelismo).
O segundo período da escolástica é
dominado pela figura soberana de Tomás de Aquino, o Aristóteles do pensamento
filosófico cristão; este período coincide com a Segunda metade do século XIII.
Depois de Tomás de Aquino, a escolástica
declina como metafísica (séculos XIV e XV), devido a um anacrônico e ilógico
retorno ao agostinianismo. Afirmam-se, entretanto, ao mesmo tempo, tendências
novas para a experiência e a concretidade, representando como que o prelúdio do
pensamento moderno. Tal desenvolvimento da escolástica no sentido da
experiência e da concretidade, é devido em especial aos franciscanos ingleses
de Osford - Rogério Bacon, Duns Scoto, Guilherme de Occam -, em conformidade
com as tendências positivas e práticas do espírito anglo-saxônio.
Educação e Cultura na Idade Média
Carlos Magno pretendia dar uma unidade
interior, espiritual, ao seu vasto e vário império e, portanto, educar
intelectual, moral e religiosamente os povos bárbaros que o constituíam. Deste
modo restauraria a civilização e a religião, a cultura clássica e o catolicismo
e lhes daria incremento. Para tanto, o meio natural eram as escolas, e o clero
se apresentava como o mais apto e preparado docente, quer pelo seu imanente
caráter de mestre do povo, quer pela cultura de que era dotado. Na intenção de
Carlos Magno, complexo devia ser o papel das escolas, que ele ia fundando e
desenvolvendo: formar, antes de tudo, mestres adequados para as escolas, isto
é, um clero culto; educar, em seguida, a massa popular, seu escopo final;
preparar uma classe dirigente em geral e, em especial, os funcionários do
império.
Havia nos mosteiros beneditinos escolas
monásticas, surgidas da própria exigência de uma observância adequada da Regra
de São Bento. Paulatinamente espalharam-se também as escolas episcopais,
imitações atualizadas das escolas catequéticas do cristianismo primitivo.
As escolas monásticas dos mosteiros visavam, antes de tudo, a
formação dos monges futuros (escolas internas), e, depois, a formação dos
leigos cultos (escolas externas), proporcionando, ao mesmo tempo, o ensino
religioso e os rudimentos das ciências profanas. O programa de ensino era,
inicialmente, bastante elementar: leitura, aprender a escrever, canto orfeônico
e um tanto de aritmética. As escolas episcopais - que surgem nas
cidades, ao passo que as escolas monásticas surgem nos mosteiros afastados das
cidades - visavam, em especial, a formação do clero secular e também de leigos
instruídos, para a vida civil. Presidia a estas escolas um eclesiástico
chamado scholasticus, dependente diretamente do bispo, donde o nome
de escolástica à doutrina e, por conseguinte, à filosofia
ensinadas. Os docentes eram também eclesiásticos e denominados também scholastici.
Carlos Magno dará muito incremento a ambas as escolas e, ademais, fundará junto
da corte imperial a assim chamada escola palatina, que pode ser
considerada como a primeira universidade medieval. Mencionamos também como, com
o correr do tempo, no âmbito das paróquias, as escolas paroquiais, destinadas a
ensinar ao povo os primeiros elementos do saber.
Para elaborar o seu vasto plano de
política escolar, Carlos Magno chamou à corte Alcuíno (735-804,
mais ou menos), que veio da Inglaterra, o viveiro da cultura naquela época. E
sob a sua inspiração, a partir do ano 787, foram emanados os decretos
capitulares para a organização das escolas, enquanto o douto inglês
ditava-lhes o programa relativo, que se espalhou pelo vasto império e perdurou
invariado, podemos dizer, durante toda a Idade Média.
O programa de Alcuíno abraçava as sete
artes liberais, de que acima falamos, repartidas no trívio e no quadrívio. O
trívio abraçava as disciplinas formais: gramática, retórica, dialética, esta
última desenvolvendo-se, mais tarde, na filosofia; o quadrívio abraçava as
disciplinas reais: aritmética, geometria, astronomia, música, e, mais tarde, a
medicina.
Sob a direção de Alcuíno, foi
constituída junto da corte de Carlos Magno a famosaescola palatina. Nela
ensinaram os homens mais famosos da época, como, por exemplo, o historiador
Paulo Diácono, o gramático Pedro de Pisa, o teólogo Paulino de Aquiléia.
Freqüentavam esta escolas o próprio imperador, os príncipes e os jovens da
nobreza. Outras escolas surgiram, em seguida, especialmente na França,
modeladas na escola palatina.
Ao lado desta instrução e educação
eclesiásticas, ministradas por eclesiásticos e, sobretudo, a eclesiásticos,
temos na Idade Média uma educação militar, ministrada por militares e a
militares; a Igreja, bem cedo, imprimiu também a esta educação uma orientação
ética, religiosa, católica. Como é sabido, o feudalismo é uma organização
social, política, econômica, militar, inicialmente baseada na força, segundo o
espírito dos bárbaros dominadores.
A Escolástica Pré-Tomista
Os Séculos IX e X:
Scoto Erígena e o Problema dos Universais
A história da filosofia escolástica
começa propriamente com o nome de Scoto Erígena.João Scoto Erígena nasceu
na Irlanda, dita Scotia maior, Eriu em língua
céltica, donde o nome de Scoto Erígena. Pelo ano de 874 é chamado à corte culta
e brilhante de Carlos o Calvo, para presidir e lecionar na escola palatina.
Parece Ter falecido em França pelo ano 877. A sua obra principal é Da
Divisão da Natureza (847), em cinco livros; é um diálogo entre mestre
e discípulo e se inspira no neoplatonismo do pseudo Dionísio Areopagita, que
Erígena traduziu do grego para o latim. Foi condenada pela Igreja (1225), e
pode-se dizer que representa a falência definitiva das tentativas de síntese
entre neoplatonismo emanatista e criacionismo cristão.
Erígena parte da revelação divina para,
depois, penetrar os mistérios mediante a razão iluminada por Deus. Tal
pretensão de penetrar racionalmente os mistérios revelados devia acabar
logicamente no racionalismo e, por consequência, na supressão do sobrenatural,
por mais ortodoxa que fosse a intenção do autor.
Eminentemente neoplatônico é o esquema
especulativo de Da Divisão da Natureza: a descida da Unidade à
multiplicidade, e retorno da multiplicidade à Unidade. De Deus desce-se às ideias
supremas, aos gêneros, às espécies, aos indivíduos, e vice-versa. Deste modo, a
divisão da natureza, da realidade, fica assim configurada:
1°. - A natureza que não é criada e cria (Deus Padre);
2°. - A natureza que é criada e cria (o Verbo de Deus, em que são
contidas as ideias eternas, exemplares e causas das coisas);
3°. - A natureza que é criada e não cria (as coisas, realizadas
mediante o Espírito de Deus);
4°. - A natureza que não é criada e não cria (isto é, Deus, concebido,
porém, como ômega, termo, fim da realidade, e não como alfa,
princípio). Como se vê, as fases primeira e Quarta coincidem (Deus = não
criado), bem como coincidem as fases Segunda e terceira (mundo = criado).
O problema dos universais,
isto é, do valor dos conceitos, das ideias, problema que tão cedo e tão
longamente interessou a escolástica, teve uma solução radical no pensamento
escotista. Que valor têm os conceitos, que são universais, em relação e
enquanto representativos das coisas, que são, ao contrário, particulares? O
problema tem uma importância fundamental filosófica, não apenas lógica e
dialética, mas também gnosiológica e metafísica.
As soluções desse problema oferecidas
pela escolástica são substancialmente, três: a solução chamada do realismo
transcendente (platônica); a solução do realismo moderado, imanente
(aristotélica); a solução nominalista.
Segundo a solução do realismo
transcendente, o universal, a ideia de uma realidade em si, não existe
apenas fora da mente, mas também fora do objeto (universal ante rem):
- é a solução platônica, geralmente adotada pela escolástica incipiente.
Segundo a solução do realismo moderado, imanente, o universal tem
em si uma realidade objetiva, fora da mente, mas é imanente nos objetos singulares
de que é essência, forma, princípio ativo (universal in re): -
corresponde à posição aristotélica, com a doutrina da forma que determina a
matéria. A solução conceptualista-nominalista sustenta que o
universal não tem nenhuma existência objetiva, mas apenas mental
(universal post rem), ou até puramente nominal (nominalismo) - no
mundo clássico esta posição é defendida
pelos sofistas, estóicos, epicuristas, céticos, isto é, pelas
gnosiologias empirista e sensitista.
Os Séculos XI e XII:
Místicos e Dialéticos
Depois da decadência cultural que se
seguiu à renascença carolíngia, começa e se manifesta nos séculos XI e XII um
renascimento especulativo. E isto não obstante a luta dos teólogos, dos
místicos, contra a ciência (a filosofia) por eles considerada um resíduo pagão,
uma distração mundana, vaidade e orgulho; e, portanto, contra os filósofos, e
os dialéticos que a cultivavam. Os maiores representantes da corrente mística
são: São Pedro Damião no século XI, São Bernardo de Claraval no século XII; da
corrente dialética os maiores expoentes são: Santo Anselmo de Aosta no século
XI e Pedro Abelardo no século XII.
São Pedro Damião, cardeal e arcebispo ostiense,
conselheiro do monge Hildebrando, mais tarde Papa Gregório VII, escreveu Da
Divina Onipotência. Nesta obra enaltece a onipotência de Deus, até
colocá-la acima de toda lei racional, inclusive o princípio de contradição; daí
a vaidade da ciência, da filosofia para entender Deus e as suas obras. São
Bernardo de Claraval rejeita, asceticamente, o saber profano como um
perigo e um luxo. A verdadeira sabedoria consiste no conhecimento da própria
miséria, na compaixão para com a miséria do próximo, na contemplação de Deus,
dos divinos mistérios, de Cristo crucificado, e culmina no êxtase. O caminho da
sabedoria é a humildade.
Santo Anselmo (1033-1109) nasceu em Aosta; foi monge prior e abade do mosteiro
beneditino de Bec na Normandia e, depois, arcebispo de Canterbury na
Inglaterra. As suas obras principais são: O Monologium, onde se
propõe demonstrar a existência de Deus com um argumento simples e evidente,
capaz de convencer imediatamente o ateu. Anselmo de Aosta é o primeiro grande
filósofo medieval, após Scoto Erígena. Também ele é um platônico-agostiniano. O
seu lema é: creio para compreender, o que significa partir da
revelação divina, da fé e não da razão; mas é preciso penetrar depois a fé
mediante a razão.
O nome de Anselmo de Aosta é ligado ao
famoso argumento ontológico, a priori, para demonstrar
a existência de Deus; este argumento é contido no Proslogium.
Pretende ele demonstrar a existência de Deus, partindo do mero conceito de
Deus. O conceito que temos de Deus é o de um ser perfeitíssimo e, logo, Deus
deve também existir realmente, do contrário não mais seria perfeitíssimo,
faltando-lhe a existência. Em realidade, o argumento ontológico não vale:
porquanto não podemos, no nosso conhecimento, passar da ordem lógica para a
ordem ontológica, das ideias aos fatos, mas deve-se passar das coisas às ideias,
da ordem real à ordem ideal.
Pedro Abelardo (1097-1142), natural de Bretanha, estudante e, mais tarde,
professor famoso em Paris, centro cultural do mundo católico, tornou-se
religioso e foi peregrinando por muitos mosteiros e cátedras, após uma aventura
amorosa com Heloísa, que lhe acarretou trágicas consequências. Acusado de
heresia, foi condenado por dois concílios. Abelardo é uma das mais originais
figuras do mundo medieval, mesmo faltando-lhe a profundidade e a capacidade
sistemática de Santo Anselmo. Em conclusão, Abelardo é, ao mesmo tempo,
filósofo e teólogo, grego e cristão, cético e sistemático, com um grande pendor
para a crítica e a dialética.
Escreveu as obras seguintes: História
das Calamidades, conto biográfico da sua aventura com Heloísa; Dialética; Conhece-te
a ti mesmo; Sic et non. No ensaio ético Conhece-te a ti
mesmo valoriza, na vida moral, o elemento subjetivo, intencional, -
elemento descurado na Idade Média - em confronto com o elemento objetivo,
legal. Reconhecendo embora que são necessários os dois elementos, a fim de que
haja ação plenamente moral, Abelardo sustenta ser mais moral um ato executado
com reta intenção, ainda que objetivamente mau, do que um ato executado
conforme a lei, mas com intenção má. Também interessante é a sua posição
crítica na pesquisa filosófica: a dúvida nos leva para a investigação, a
investigação nos leva à ciência. Na obra Sic et non - coleção
de sentenças contrastantes dos padres sobre assuntos da Escritura e da teologia
- Abelardo se integra nas fileiras dos sentenciários, isto é, dos
autores doslibri sententiarum entre os quais o mais famoso é Pedro
Lombardo, (século XII), chamado precisamente magister sententiarum.
Os livros das sentenças eram coleções sistemáticas - mais ou menos críticas -
das doutrinas das Padres, ordenadas segundo o esquema: Deus, criação, queda,
redenção, meios de salvação. Preparam as grandes sumas medievais,
especialmente as tomistas, que são construções sistemáticas elaboradas
criticamente.
Encerra-se assim o século XII e está nos
albores o século XIII, o século de ouro da escolástica e do
pensamento filosófico cristão.
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