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textos fundamentais para compreender Nietzsche
Nietzsche e a tragédia humana
Até a Grécia antiga anterior a
Sócrates, o homem tinha uma relação íntima com a natureza. Os deuses representavam as
mais altas (e as mais baixas) qualidades humanas. Os homens se identificavam
com os deuses e suas ações visavam a plenitude da existência. Para Nietzsche, a
vida é “vontade de potência”, que é o desejo de viver de forma plena e
vigorosa, por isso o filósofo alemão considerava a perspectiva dos
antigos algo mais próximo de uma vida plena e carregada de significados. Os antigos mesclavam a
realidade ao mito, a existência aos mais profundos anseios inconscientes.
Na era medieval essa visão platônica se acentua e o cristianismo
se instala, fundando a Europa
cristã. Agostinho, irá retomar as ideias de Platão e fundar uma doutrina cristã
de enfraquecimento. O homem já nasce pecador e miserável e somente o Deus
cristão poderia “perdoá-lo” e “salvá-lo”. Tal é a ideia do “pecado original” de
Agostinho que o cristianismo adotou como oficial.
A humildade e a
humilhação passam a ser valorizadas e esse mundo torna-se um lugar
não apenas imperfeito, mas também de castigo e sofrimento. O orgulho e a
altivez são vistos como pecados. O deuses antigos são transformados em demônios
“pagãos” e associados com o mal que leva o homem ao inferno. Agora o homem não
é apenas fraco, é também assustado, paranoico, e diviniza as mais baixas
qualidades humanas. O homem forte, vigoroso e orgulhoso tornou-se “mau” e “condenado”,
e o fraco que sempre ressentiu-se da superioridade do forte passou a ser “bom”.
Se na era medieval a
questão de Deus era o ponto central, na era moderna ocorre uma transição, uma
passagem da visão cristã para uma nova percepção do mundo e do homem, não mais
como um ser criado por Deus, mas dono de si que a tudo investiga com a razão e a experimentação. O Renascimento,
que marcou o início da modernidade, foi definido pelo uso da razão,
pela negação da visão medieval e pelo surgimento de um novo Deus: a ciência.
A modernidade
pretendia emancipar o homem, mas conseguiu dessacralizar
mais ainda o mundo e não deu nada em troca, a não ser a crueza de uma vida sem
encantos ou significados. A revolução industrial deu origem à grande massa
humana, a multidão que se desloca diariamente de suas casas para as fábricas e
escritórios em busca de objetivos
mesquinhos, lutando por uma vida superficial de pequenos prazeres. As eras
medieval e moderna transformaram todos os homens
em iguais, promovendo a normalização da natureza humana.
Na modernidade o diferente
é perseguido e criticado, pois tudo tem de ser de acordo com normas e costumes niveladores. Nietzsche pela primeira vez identifica esse comportamento afetado
e paranoico com o ressentimento, que é a inveja que o fraco tem do forte e do
diferente. Tal pensamento
totalmente original irá inspirar Freud na criação da teoria do inconsciente.
Para Nietzsche a era moderna criou uma expectativa desmedida e ingênua,
baseada na razão e na ciência, que tirou do homem sua profundidade.“Deus está morto” é uma crítica à própria
filosofia de seu tempo, influenciada por Descartes, pai da filosofia moderna que colocou o homem (o “eu”) no centro da investigação filosófica e
definiu a natureza como um mecanismo sem mistérios.
Nietzsche afirma então que o homem moderno não sabe mais para o
que se voltar. A filosofia ocidental e a
modernidade falharam em dar um significado à vida. O que morreu foi nossa
dimensão divina, nossa vontade de viver plenamente e nosso heroísmo, nos tornando
animais de rebanho, ovelhas, seres pequenos, egoístas, covardes e assustados. O único mérito que o homem moderno tem é o fato de sua tragédia
ser apenas uma transição para o além do homem, que será o momento que o
homem vai se desfazer de toda essa baixeza e viver sua vida de forma autêntica,
original e plena. Assim falava Friedrich Nietzsche, assim falava Zaratustra.
Nietzsche: dimensões humanas e
além do homem
O excesso de razão
Essas duas dimensões
complementam o homem, e Nietzsche aponta para o erro dos valores da sociedade
europeia (que foram transmitidos para as Américas) que tentam controlar estas funções
com o excesso
de racionalização e imposição de representações
religiosas, ideias partidárias e esquemas econômicos que geram
uma supervalorização da dimensão apolínea.
Além do homem
Para Nietzsche, o
homem deve ser livre para criar suas próprias representações e não mais adotar
as representações limitantes impostas por esses esquemas. Aquele que consegue
ser livre e viver sua vida de acordo com suas próprias representações, criadas por sua
vontade, estaria além do bem e do mal e
seria um novo homem dentro de uma nova realidade. Este seria o Super-Homem,
uma das ideias centrais de Nietzsche, que alguns filósofos preferem traduzir do
alemão Übermensch como além
do homem.
Nietzsche e Freud
Essa perspectiva de
Nietzsche sobre as dimensões humanas inspirou posteriormente Sigmund Freud na
criação de sua teoria do inconsciente. Para Freud, a civilização é incompatível
com os instintos mais profundos do homem, pois valoriza a razão e reprime os
desejos, o que acabaria gerando vários problemas psicológicos.
Nietzsche, socialismo e capitalismo
Não faz sentido que os
militantes da esquerda ou da direita utilizem Nietzsche para sustentar coisa
alguma. Por mais que a
morte de Deus seja algo utilizado pelo ateísmo para lutar contra o “poder
alienante e opressor da religião” (que é um projeto de Marx), vale lembrar que
na política Nietzsche é simplório: o forte se estabelece e o fraco perece,
porém, quando o fraco por uma artimanha toma o lugar do forte, temos uma
sociedade medíocre e sem valor. Nivelada por baixo. E Nietzsche sustenta que é
através da religião e da política que o fraco toma o lugar do forte.
Nietzsche tinha
ojeriza a qualquer “voz do oprimido”. Além do mais, antes que a direita —
chamada de burguesia pela esquerda — utilize esse filósofo para sustentar a
meritocracia usando o conceito do forte, vale também lembrar que para
ele a tal burguesia não passava de um bando de gente cafona e sem brilho que só
pensa em dinheiro e olhe lá. E não adianta usar roupas
caras, pois a baixeza de espírito é visível. Melhor para humanidade que
nunca tivessem surgido, assim ele sustenta em suas obras. Abaixo segue um
exemplo:
Quem tentar utilizar
Nietzsche como ferramenta política pode se queimar. E ele mesmo deixou o
recado: “Aquilo que toco torna-se chama”. Não é um filósofo para os preocupados
com dinheiro, religião, igualdade e democracia. Para ele a modernidade nivelou
todos por baixo, foi uma tragédia e não tem salvação. Não estou defendendo o
bigodudo, sou democrático. Para ele sou medíocre. Mas era assim que ele pensava.
E isso deve ser levado em consideração. Os filósofos de esquerda da Escola de Frankfurt também
cometeram o erro de incluir Nietzsche em suas pretensões marxistas. É preciso
entender que o projeto de Nietzsche é outro, que é o Além-homem, o Übermensch.
Sim, eu sei de onde venho! Insatisfeito como o fogo, ardo para me
consumir. Aquilo que toco torna-se chama, e em carvão aquilo que abandono. Sou
fogo, com certeza!
Nietzsche:
vontade de verdade e vontade de potência
A vontade de potência é um dos conceitos centrais da filosofia de Nietzsche. É
através dele que este filósofo alemão irá construir sua crítica tanto à
filosofia ocidental realizada após Sócrates quanto ao cristianismo. No entanto,
para entender a vontade de potência é necessário compreender seu conceito
oposto: a vontade de verdade.
Vontade de verdade é desejo de
fundamento
A vontade de verdade é o
desejo que motiva o homem a encontrar uma verdade eterna e imutável que estaria
por trás da realidade. Mas Nietzsche acredita que a vontade de verdade tem uma intenção
prática e política de nivelar os homens, normatizar a vida e reduzir o
pensamento, barrando o fluxo de lembranças, vontades e
desejos que sempre impulsionaram a humanidade. A vontade de
verdade se revela nas religiões e na filosofia pós-socrática como um desprezo
pelo mundo, fazendo o homem voltar-se para um suposto além-mundo, criando uma
valorização espiritual que acaba por desligar o homem da realidade, tornando-o
doente, fraco e manipulável.
Até mesmo o ateísmo é uma vontade de verdade, uma crítica
estéril a um Deus que não existe, gerando uma atividade filosófica inútil.
Nietzsche nos fala que a modernidade foi tomada por uma vontade de verdade que atenta
contra a vida, e que todos os valores que hoje são difundidos
nas sociedades ocidentais são como doença, valores infestados de preconceitos
morais que degeneram o homem. Isto fez com que o ocidente gerasse homens
fracos, “humildes” e dignos de pena. A valorização do espiritual acaba por gerar
uma precariedade espiritual. A vontade de verdade é, para Nietzsche, uma
mentira.
Vontade de potência é desejo de
viver
Por outro lado, a vontade
de potência é uma vontade de vida, não de saber a verdade da vida, mas de viver.
A vontade de potência se volta para este mundo e para os fluxos de imagens
fortes, individuais e primitivas que nos ligam à vida, que nos dão força,
significados e objetivos. Ora, são justamente esses fluxos e essas vivências
individuais que ligam o homem à vida e ao mundo.
Então, a
vontade de potência considera as vivências como a vida autêntica.
Pensar a vontade de potência seria aceitar e pensar a vida, esta vida de cada
um de nós, que cria nossa identidade e nos liga ao mundo e ao futuro, e
não a um suposto além-mundo. Exemplos de vivências primitivas
podem ser nossas experiências infantis, um primeiro beijo, o filho no colo, a
mulher nos braços, aquele trem de brinquedo que montei quando criança – do qual
me lembro ao ver um trem de verdade. São nossas experiências poéticas, intensas,
emocionantes.
O futuro da
humanidade não estaria depositado nas mãos dos líderes espirituais, nem nas
mãos dos políticos egoístas da democracia (que Nietzsche considera outra
mentira), mas nas mãos dos homens fortes que se ligam de forma intensa ao
mundo, “espíritos livres que não acreditam mais na verdade”, que aceitam sua
finitude e assumem a dor e a alegria do mundo, ultrapassando simbolicamente sua
condição humana. Estes são, segundo este filósofo, os super
homens. Somente estes refletem profundamente sobre o mundo à
sua volta e sabem o que é bom, verdadeiro e belo. Assim falava Friedrich
Nietzsche, assim falava Zaratustra.
Nietzsche
e o Eterno Devir: “Viva o melhor possível e, só então, morra”
Nietzsche nos pergunta se a vida que vivemos é a vida que
escolheríamos viver eternamente. Chamou esta ideia de “eterno devir”.
Zaratustra, o personagem de sua obra prima, condena a mediocridade e exorta as
pessoas a serem melhores do que são, a se descobrirem e se excederem. Este Trecho do livro A Cura de
Schopenhauer, de Irvin D. Yalom aborda essa ideia de Nietzsche.
Certa noite, sem
conseguir dormir e precisando se animar um pouco, foi mexer nos livros da
biblioteca. Não encontrou nada na sua área que pudesse, mesmo remotamente,
aliviar sua situação, nada que dissesse como uma pessoa deveria viver, ou
encontrar sentido nos dias de vida que ainda lhe restam. Viu então um exemplar
bastante manuseado de Assim Falava Zaratustra, de Nietzsche. Conhecia bem aquele
livro: décadas antes, ele o tinha estudado muito quando escrevia uma artigo
sobre a grande, mas não reconhecida, influência de Nietzsche sobre Freud.
Achava Zaratustra um livro corajoso, que, mais que qualquer outro, ensina
como reverenciar e celebrar a vida. Sim, podia ser a resposta. Ansioso demais
para ler com método, percorreu as páginas aleatoriamente e leu algumas linhas
que estavam sublinhadas.
Entendeu que as
palavras de Nietzsche significavam que era preciso escolher a sua vida – ele
tinha de usufruí-la em vez de ser “usufruído” por ela. Em outras palavras,
tinha de amar seu destino. E, acima de tudo, havia a pergunta que Zaratustra
sempre fazia – se
gostaríamos de repetir a mesma vida eternamente. Uma ideia curiosa e, quanto mais Julius pensava nela, mais
seguro se sentia: a mensagem de Nietzsche para nós era viver de forma a querer
a mesma vida sempre.
Continuou folheando
as páginas e parou em dois trechos bem sublinhados com tinta rosa “Complete sua
vida.” “Morra na hora certa.”
Isso mesmo. Viva o
melhor possível e, só então, morra. Não deixe nada por viver. Julius comparava
as ideias de Nietzsche a um teste de Rorschach, pois tinham tantos pontos de
vista opostos que a conclusão dependia de quem lesse ou, no teste, de quem
olhasse. Por mais que Zaratustra exaltasse, até glorificasse a solidão, por
mais que exigisse o isolamento para poder pensar, ainda assim estava preocupado
em amar e exaltar os outros, em ajudá-los a se aperfeiçoar e se exceder, com
compartilhar com eles sua maturidade.
Colocou o livro de
volta na estante, sentou-se no escuro e ficou olhando pela janela o farol dos
carros, pensando nas palavras de Nietzsche. Após alguns minutos, conseguiu:
descobriu o que fazer e como passar seu último ano de vida. Iria viver
exatamente do mesmo jeito que o ano anterior e o antes do anterior. Gostava de
ser terapeuta, gostava de se ligar a outras pessoas e ajudar a trazer algo à
vida.
Nietzsche
e os filósofos pré-socráticos
Nietzsche considerava os
pré-socráticos os verdadeiros filósofos, pois não separavam o homem da natureza. Eles produziram uma
filosofia carregada de mitos, imaginação, cores, cheiros e sabores, voltada
para a vida e seu dinamismo, para a descoberta dos fundamentos do mundo através
da contemplação e apreciação da natureza.
Por isso eles foram
chamados de “os filósofos da natureza”. Heráclito, um
dos pré-socráticos que influenciaram Nietzsche, declarou que “um
mesmo homem nunca se banha no mesmo rio“, apontando para a
eterna transformação e devir da natureza e enfatizando a ideia de que o homem
seria parte desse dinamismo.
A “busca pela verdade” iniciada
por Sócrates é para Nietzsche um enorme engano, um desvio
que levou todo o mundo ocidental a investigar aquilo que não existe, além de
cometer o erro de colocar o homem no centro da investigação filosófica,
separando-o da natureza. Esta mudança de objetivo (da natureza para o homem) é
conhecida na história da filosofia como “virada antropológica“. Nietzsche chama esse
período específico da história da filosofia de “início da tragédia”.
Zaratustra
e a apologia ao Sol
Quando chegou aos
trinta anos, Zaratustra deixou sua pátria e o lago de sua terra natal e partiu
para as montanhas. Lá permaneceu, nutrindo-se de seu espírito e de sua solidão,
sem se cansar. Dez anos se passaram. Seu coração, porém, mudou e, uma manhã,
tendo-se levantado com a aurora pôs-se frente ao sol e assim falou:
“Tu, grande astro!
Que seria de tua sorte, se te faltassem aqueles a quem iluminas? Há dez anos
continuas subindo até minha caverna. Se eu, minha águia e minha serpente não
estivéssemos aqui, tu te haverias cansado de tua luz e deste trajeto.
Nós, porém, te esperávamos todas as manhãs para recebermos teu supérfluo e por ele te rendemos graças. Pois bem, já ando farto de minha sabedoria, como a abelha que acumulasse demasiado mel. Sinto necessidade de mãos que se estendam para mim.
Quem dera eu pudesse prodigalizar e repartir até o dia em que os sábios, entre os homens, se sentissem felizes por sua loucura e os pobres, felizes por sua riqueza.
Por isso, preciso descer às profundidades, como tu fazes todas as noites, quando mergulhas para além do mar para levar tua luz ao mundo subterrâneo, astro que tudo superas.
Como tu, preciso declinar, como dizem os homens, entre os quais pretendo descer.
Abençoa-me, pois, olho afável que pode ver sem inveja até mesmo o excesso de felicidade.
Nós, porém, te esperávamos todas as manhãs para recebermos teu supérfluo e por ele te rendemos graças. Pois bem, já ando farto de minha sabedoria, como a abelha que acumulasse demasiado mel. Sinto necessidade de mãos que se estendam para mim.
Quem dera eu pudesse prodigalizar e repartir até o dia em que os sábios, entre os homens, se sentissem felizes por sua loucura e os pobres, felizes por sua riqueza.
Por isso, preciso descer às profundidades, como tu fazes todas as noites, quando mergulhas para além do mar para levar tua luz ao mundo subterrâneo, astro que tudo superas.
Como tu, preciso declinar, como dizem os homens, entre os quais pretendo descer.
Abençoa-me, pois, olho afável que pode ver sem inveja até mesmo o excesso de felicidade.
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